domingo, 27 de março de 2011

Coisas que se contam #6

Destinátario

Passou cola nas bordas do envelope. De tanta poesia todo o espaço da carta acabou. O que restava a ela era continuar a escrevê-las por fora mesmo, que a loucura de seus textos e de sua alma estavam em estado de impaciência. Um grito cursivo dos delírios do dia anterior. Detalhes fragmentados daqueles dias em que sentimos a eternidade em um momento, aquele no qual juramos que o futuro já sabemos. No meio de toda sentimentalidade que ali se pusera ainda coube uma foto. Foto essa que escolheu entre as muitas que tinha. A mais bonita, mais especial. A mais preciosa que a remetente pusera alguma vez na vida em um envelope. E assim terminada a carta com esse ato, mandaria seus segredos. Impossíveis para quem não ama ou para quem nunca amou.


Saiu cedo para o trabalho com o intuito de enviar sua alma. Colocou na caixa dos correios o envelope, seus anseios. E esperava já angustiadamente a reação do destinatário ao recebê-la nos dias que se seguiam. Um silêncio de duas semanas. Nenhuma manifestação até que se denunciou: “Você recebeu?”. Ficou pasma, pois carta nenhuma havia chegado ao destino premeditado. A central de correios, era lá que possivelmente a carta estaria quando não chegasse ao destino ou origem que saíra. Mesmo por algum erro seu praticado na nervura do momento teria de estar por lá. Suas confidencias lá não estavam. Resolveu então mandar outra, esta agora mais simples, comedida até – menos subserviente às emoções. Essa chegou ao destino. Após alguns dias – chegou. Da carta anterior teve que se esquecer. Por mais desejo que tivesse em recuperá-la não via nenhuma forma de isso acontecer.


Teve um dia que não pensou mais na carta. Até as emoções pelo amante já não se mostravam tão quentes quando da sua escritura. Nunca soube do paradeiro, a mesma perdeu-se de sua memória. Jamais conheceu o seu destino nem o do carteiro, que ao ver a carta na caixa, recolheu, leu e cuidadosamente separou-a das outras. Teve tanto carinho em guardá-la que o mesmo capricho lhe reservou em não a entregar. E ao ler e reler, o incenso que acende como um ritual lhe faz companhia. Sem coragem de enviar uma carta. Não tinha sequer o que julgava ousadia de passar olhando para a casa da remetente. Apenas ficou com ela. Apaixonantemente possessivo às letras que lá estavam. Recolheu para si o momento mais intenso, recolheu a eternidade de um sonho.


Traça

Começou alimentando-se de paisagens. Conhecendo França, Portugal e o interior do Nordeste brasileiro. Encontrou, por seus inúmeros caminhos, Cubas, Marcel e Raskólnikov. Percorreu a linha além do bem e do mal, avançando entre o futuro e passado e sua possível cronologia. Contemporânea a si mesma. Rompendo em seu conhecer. Até que um dia invadiram o seu mundo. Percorreram, página por página, desenfreadamente, o que levara anos a entender. Encontraram-na obesa, erudita e sem ter com quem conversar. Ponto.

Um olhar

numa manhã amarelecida
um caju maduro e o sol dourado
disputavam a vaidade
do dia que nasce

Pendulando

O velho pousa em sua cadeira de balanço
e seus pensamentos voam ao entardecer.

Como uma engrenagem de um relógio, belo,
pendularmente,
ao cair da tarde...

O velho olha, contemplativo, os transeuntes.

(velocidade assustadora de passos indecisos )

Experiências antigas de cabelos grisalhos
balançam de sua cabeça.

(maturidade sem pressa)

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Coisas que se contam # 5


FARPA NO DEDO



A comida era feita de qualquer forma, não se identificava quase nada do que lá ela misturava. “Ele come o que eu botar.” Arroz, feijão, macarrão e um ovo.

Pelas frestas olhava o barulho. Sua respiração forte era ouvida em prazer com ele mesmo, gostava de fazer isso: projetar através da porta o seu bufar e se escutar.

Amarrava um lenço na vasilha, trazia uma garrafa com água em suas visitas – um litro apenas da água do poço, na lata que era de óleo. Caminhava metodicamente à uma da tarde, sua procissão. “Devia não ter voltado... Estou que num me agüento. Ainda chegou sozinho... achou o caminho de volta.” O sol quente após o almoço. Prosseguia pelo baixio escutando os seus passos na terra seca.

Um penico de fezes ficava no canto da sala, uma lata grande de urina também em um outro local da casa. A barba estava enorme e não tomava mais banho, o calção de dias rasgando-se ficara em seu corpo, até não mais poder. Sem falar mais com ninguém, passava o dia a esmo dentro da casa e de seus perigos. O fogo era aceso de quando em vez, às vezes por motivo justo.

Ao passar pelas casas cumprimentava e por vezes tardava um pouco. Assunto nenhum, apenas um balançar de cabeça afirmativo o que lhe falavam. Afirmava muitas coisas que sequer ouvia. “Eu é que sei de mim. Dormir ao lado dele... tá pensando? Quem não acorda sou eu!” Distraía-a em sua caminhada o rastejar dos bichos, os procurava com olhos, muitas vezes nada achava.

A barriga martelava a hora próxima. O corpo se regulara com o tempo. Quando cansava da fresta, andava pelo corredor alterando o toque nas paredes, esquerda, direita, esquerda... Às vezes deitava ao chão e forçava o olhar no brilho do cimento, era tocado pelo raio que escapava para dentro da casa por um furo na telha. Ficava vendo a poeira dançando e ria.

“Já levaram duas vezes, vou pedir que levem de novo. Ainda tenho a corda... a mim ele não respeita mais, mas a corda ainda funciona.” Abria a cancela que em outros momentos era tão ativa, vigiada por cão. A casa mais viva. Colocava agora no batente o alimento e a água, batia na porta, por vezes até se achar percebida. “Ora minha cruz... vou ter que morrer também.”

Saiu só depois...